Ando por aqui há muito tempo. Chamam-me fenómeno centenário, dão-me pancadinhas nas costas, e fazem-me tatuagens com canivetes, numa ânsia de perpetuarem os seus nomes e as suas presenças no tempo, essa coisa que é tão humana, a fuga incessante do esquecimento, como se isso não fosse inevitável. Já vi muitas gerações, e acabamos sempre por acabar por ser uma fotografia esquecida numa gaveta ou num álbum amarelado. Eu própria já apareci em muitas fotografias. No início da minha vida passava despercebida, mas com o passar do tempo comecei a ser cenário dos momentos captados pelos casais enamorados, pelos pais orgulhosos com as suas criancinhas ao colo, pelos amigos em dia de folia...As primeiras imagens eram a preto e branco, e não captavam bem a alegria do momento, o brilho dos olhares...apenas eu me mantive sempre a mesma, umas vezes com os ramos inclinados mais para a frente, outras mais para o lado. Eles não sabiam, mas eu procurava dar a sombra necessária para uma fotografia com melhor qualidade de luz. Daria uma perfeita assistente de fotógrafo, se não tivesse nascido árvore. Hoje em dia já não é necessário esse meu servicinho, a tecnologia avançou bastante e eu só preciso ficar quieta. Sou robusta e corpulenta e, permitam-me a vaidade, a minha presença por si só dispensa poses ou adereços...embora eu seja presentada com estes em certas alturas do ano, sendo alguns deles agradáveis, coloridos e leves, dançando nos meus ombros ao sabor do vento e da música alegre que vibra na praça. Nesta altura crianças correm de um lado para o outro e à minha volta, gargalhadas soltas pela noite adentro, misturando-se com o fumo das sardinhadas. Esta tradição mantém-se ao longo das décadas, mas as crianças de agora são descendentes das de outrora, estas mais pobres, muitas delas descalças e ansiosas pela sardinha a que estas agora torcem o nariz. No entanto as gargalhadas soam iguais, e a alegria das suas brincadeiras tem a mesma nota musical. São os adereços de verão, das festas, do sol e da música. Aqui na praça assisti ao início de muitos namoricos nestas ocasiões, e ao fim de outros tantos, apesar de terem ficado perpetuadas em mim juras de amor, com assinatura e tudo.
Também fui testemunha de muitos casamentos da igreja aqui em frente, com a inevitável fotografia dos noivos, cada um do meu lado a segurarem as mãos e as promessas acabadas de fazer. Isso era mais frequente antigamente, agora saem da igreja e vão para uma quinta posar em fotografias mais elaboradas e artísticas. Fico com a sensação que outrora a emoção do dia provinha das promessas que se faziam para a vida toda, e que hoje em dia esse sentimento está mais relacionado com o imediato: ter o dia perfeito, no sítio perfeito, e com fotografias perfeitas a eternizarem cada momento. Pareço saudosista, mas não estou a ser! É que eu já vivi muito, mais do que a maioria da minha espécie, e acabo por observar e constatar a evolução das coisas, especialmente tendo sido plantada no centro dos acontecimentos, a praça. Esse sítio onde tudo acontece, tudo se vê, e tudo se ouve...seja qual for a altura do ano! E, por falar em altura do ano, regresso ao tema adereços. Na época de natal empoleiram-se em mim, o que já não gosto tanto porque estou mais sensível a certos contactos, em especial ao do escadote que aguenta com o Manel gordo. Certo como um relógio, no dia 1 de Dezembro lá trepa ele por mim acima, esfregando a sua barriga cada vez maior na minha casca queixosa, e pendura aquelas luzinhas irritantes que não me deixam dormir. Cada vez adormeço mais cedo, afinal de contas já conto com mais de três séculos, e aquele pisca-pisca intermitente perturba o meu descanso. Mas tudo isso é compensado pela alegria que paira no ar, especialmente quando montam a feira de Natal e os carrosséis para as crianças. Hoje em dia é tudo muito mais barulhento do que quando eu era uma jovem, e sinto por vezes que devia era ter nascido velha e evoluído para jovem, de forma a acompanhar toda esta agitação de forma mais confortável. Antigamente aborrecia-me de morte com os velhotes sentados no banco aqui ao lado, e com as suas conversas de dores e impaciências com “a malta nova”. Agora sinto-me como numa reunião de amigos, solidária com aqueles queixumes. Continuo a adorar as crianças, mas quando vejo uma delas a olhar-me com aquela expressão de quem vai trepar por mim acima até me treme o cabelame...mas, uma vez com elas ao meu colo, qual macaquinho no seu galho, sinto-me rejuvenescida como se os séculos não tivessem passado por mim! E, enquanto ouço a tagarelice animada entre o pequeno Vicente e a Beatriz, recordo-me dos pais deles, a Carla e o Paulo, e os pais destes, a Carminda e o António, e os avós e os bisavós...mudaram as brincadeiras, as conversas, a forma de vestir, e os pés descalços que antes me faziam cócegas e provocavam uma sacudidela nos meus ramos - atribuída ao vento - estavam agora calçados, o que não era tão confortável para mim. Mas, passe o tempo que passar, criança alguma consegue resistir ao apelo de trepar a uma árvore!
Mas nem tudo foram alegrias. Certa vez assisti, horrorizada, à corda que se enrolava num dos meus ramos. Sacudi-me em desespero, num grito mudo de dissuasão que fez o Zé das Birras olhar em volta, confuso. Mas foi em vão e ele trepou por mim acima, enrolando a corda nos pés. Por eles deixou-se assim ficar pendurado, de cabeça para baixo, primeiro agitado, depois zangado, até que se quedou numa quietude cansada, numa noite que julguei não ter fim, sem ter pregado olho e o ramo já a ficar dorido, chiando num queixume. Com a chegada do dia veio a confusão e os gritos, e uma família chorosa. Nunca tal coisa se tinha visto por ali no meio da praça, e o Zé das Birras bem podia ter escolhido sítio mais discreto, murmuravam os velhotes da altura sentados no mesmo banco de hoje. A quem o diziam, que tive noites e noites de insónia até deixar de o sentir ali pendurado! As árvores dos montes já estavam habituadas a coisas assim, e tinham a companhia umas das outras para se apoiarem. Agora eu ali, sozinha e confusa...foram tempos difíceis, mas a vida não para, especialmente numa praça, onde as conversas se multiplicam, pois basta haver duas pessoas para haver dois pontos de vista, duas versões... O suicídio do Zé das Birras deixou de, gradualmente, ser assunto de conversa embora, a certa altura, a família quisesse que eu fosse abatida, pois a minha presença era considerada o constante lembrete de uma tragédia. Felizmente a minha idade deu-me privilégios e cheguei a viver um momento divertido em que várias pessoas se juntaram à minha volta, em exclamações inflamadas sobre a minha importância, chamando-me “património”. Confesso que fiquei vaidosa com tanta atenção, e até o meu cabelame pareceu inchar, assemelhando-se às “mises” que as irmãs Mercedes faziam uma vez por semana, passando religiosamente pela praça todas as quintas-feiras de manhã, num desfile de vaidade.
Passada esta fase mais turbulenta, tudo regressou à normalidade, a vida seguiu o seu curso natural. Não muito tempo depois morreu Arminda, a beata solteirona cá do sítio. Foi para o outro mundo durante o sono – uma morte santa! - mas exibia um sorriso feliz, o que se tornou num novo tema de conversa e de variadas teses. Chegou também mais uma época de festa, que trouxe consigo as castanhas assadas e os arraiais. E houve nascimentos, tão importantes como a morte, embora tal acontecimento não seja considerado material interessante o suficiente para debater, excepto se houver tragédia ou exuberância pelo meio. Foi o caso de Maria, que nasceu em noite de trovoada, sem a mãe ter tempo de pedir ajuda, sendo auxiliada por uma vizinha que quase desmaiou ao ver a criança chorar com uma boca quase cheia de dentes. Parecia coisa do diabo e a mãe teve medo de lhe dar peito, tendo desenvolvido uma mastite, e a pequenita chorou dias a fio nos primeiros meses de vida, com cólicas devido ao leite de cabra que lhe davam. Mas a criança revelou-se mansa como um anjo, destacando-se a sua serenidade e os olhos invulgares, um preto e um azul, o que causava estranheza à primeira vista. Foi, curiosamente, a única criança que nunca se sentiu tentada a trepar para os meus ramos… Tal como outras, a história do seu nascimento dissolveu-se com o tempo nas brumas do esquecimento, assim como outras tantas surgiram e desapareceram no escorrer dos anos. Ah, se os meus ramos falassem...! Quantas coisas poderia eu contar, e talvez nem uma vida de Homem fosse suficiente! Mas o sol já se põe, igual todas as noites, imutável e deliciosamente previsível. Pergunto-me se ele vê o mesmo que eu e muito mais, com tantas voltas que dá...sacudo os ramos num último movimento antes de dormir. Preciso descansar as raízes, o peso dos anos já se faz sentir, sabem...? Mas a memória...ah, essa está fresca! Amanhã...talvez amanhã vos conte mais uma história ou duas.